Filme “O Abismo” da Netflix e o desastre em Maceió
A história do filme “O Abismo” “O Abismo” é um filme sueco disponível na Netflix, inspirado na história ocorrida na
O longa-metragem “Coringa”, uma das produções mais aclamadas de 2019 e responsável por levar 6,5 milhões de brasileiros aos cinemas, não é um filme fácil de digerir. Ambientado nos anos 1980, o filme mostra a transformação do esquisito, azarado e perturbado Arthur Fleck, apelidado de Feliz pela mãe, de aspirante a comediante de stand up em um assassino cruel. O filme conta a origem do personagem sombrio e sua entrada para o mundo do crime.
Dirigido por Todd Phillips, a mais recente incursão do icônico personagem dos quadrinhos no cinema, com Joaquin Phoenix no papel do vilão do universo de Batman, chegou a faturar o Leão de Ouro do festival de cinema de Veneza, o mais antigo do mundo. Embora tenha sido muito elogiado, também foi criticado por supostamente incentivar a violência e gerou um acalorado debate por deixar os cinéfilos desconfortáveis ao mostrar um homem lutando para se integrar à sociedade despedaçada de Gotham City.
Neste artigo, deixaremos as questões comportamentais de Arthur Fleck no filme para as áreas da Psicologia e da Psicanálise que, certamente, tem muito a contribuir na caracterização da personalidade do personagem – afinal, são elas que podem nos dizer se ele é doente mental, assassino, vítima da sociedade, ou, simplesmente, o retrato do mal.
Para nós da Geografia, interessa discutir a realidade urbana fragmentada de Gotham City e aí analisar como a mesma colabora para com a construção da identidade do indivíduo.
Segundo o geógrafo e professor Roberto Lobato Corrêa, o espaço de uma cidade capitalista constitui-se no conjunto de diferentes usos da terra justapostos entre si, resultando em uma complexa diferenciação do espaço urbano que, por sua vez, passa a ser entendido como fragmentado.
O referido autor, no entanto, é capaz de completar dizendo que o espaço urbano é simultaneamente fragmentado e articulado, uma vez que cada uma de suas partes mantém relações espaciais com as demais, apesar de que sejam de intensidade muito variável. Convém deixar claro que, no capitalismo, a articulação tende a ser menos visível que a fragmentação, por conta do que lhe sustenta, como, a mais-valia, salários, juros, rendas e etc.
Percebendo a intensa divisão articulada do espaço urbano capitalista, tem-se que ele é reflexo da sociedade sendo a expressão espacial dos processos sociais, o que se materializa na configuração de áreas segregadas da cidade que refletem a estrutura social de classes e cuja principal marca é a desigualdade.
Ao mesmo tempo em que é reflexo, a cidade capitalista é condicionante da sociedade, o que se dá pela função que as formas espaciais fixadas pelo Homem desempenham na reprodução das condições de produção e das relações de produção.
Por último, a cidade é o lugar onde as diversas classes sociais vivem e se reproduzem a partir de suas crenças, valores e mitos, dando a ela uma dimensão simbólica que, entretanto, varia entre diferentes grupos sociais, culminando na já mencionada fragmentação desigual do espaço que passa a ser ainda descrito como campo de lutas.
Em resumo, o espaço urbano é fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, cheio de símbolos e campo de lutas. É a própria sociedade na sua dimensão mais aparente, cristalizada nas formas espaciais. Mas, afinal, como essa produção desigual/fragmentada do espaço urbano se expressa em Gotham City do filme “Coringa”?
No filme, isso pode ser visto nitidamente nas próprias características do condomínio e do bairro que Arthur Fleck mora, além de outros espaços que frequenta, por exemplo, os espaços evidentemente destinados à elite quando procura por seu suposto pai. Ademais, é possível visualizar isso quando os remédios de Fleck são cortados pelo governo, elucidando a atuação do Estado como um dos agentes reprodutores de desigualdades.
Sem contar que há um tratamento diferenciado, no sentido de inferior, para quem vive às margens da sociedade. Eis a dinâmica da segregação que não é apenas econômica, mas é também social e espacial.
Do ponto de vista geográfico, o filme permite ao espectador a possibilidade de fazer a leitura da cidade como segregadora socioespacial e lugar de consolidação dos interesses capitalistas. Isso é ainda mais notório quando consideramos que a inspiração para sua produção foi Nova Iorque, uma grande cidade capitalista e, como tal, não está livre dos processos de contradição deste sistema.
Sendo a segregação socioespacial, ou segregação urbana, o processo pelo qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões ou em conjuntos de bairros, ela é trabalhada na trama principalmente no lugar de moradia de Arthur Fleck, caracterizado como um apartamento antigo e afastado do centro de Gotham City, uma realidade bastante comum também em cidades brasileiras.
Verifica-se uma segregação imposta sobretudo àqueles grupos sociais marginalizados e não dotados dos mesmos privilégios da classe dominante, segregação esta que é destinada, por meio da configuração de áreas sociais segregadas, a manter a divisão social do trabalho e as condições de reprodução das relações sociais de produção.
Daí fica claro dizer que a sociedade ao passo que constrói e transforma o espaço é também influenciada por ele, ou seja, a relação sociedade e espaço é marcada pela dialética/pelo movimento de ambas as partes. Portanto, quando se fala do espaço urbano como lócus do capitalismo, é urgente considerar que sempre haverá pessoas que serão afetadas e outras que serão agraciadas pela segregação.
No caso do personagem Fleck, observa-se, de uma vez por todas, o quão perverso é o espaço urbano com os menos favorecidos e com aqueles que saem do padrão. Ademais, nota-se um intenso conflito entre classes, onde os menos favorecidos se sentem representados pela imagem do Coringa.
Diante disso, é possível concluir que, longe de querer justificar a violência, Fleck seria uma espécie de “Serial Killer” criado pelo sistema e pela segregação socioespacial. E, de fato, essa segregação é quem pode ser considerada o verdadeiro “coringa”, não só da trama, mas também do capitalismo por completamente corroborar com a manutenção de todas suas contradições e, no caso, com um espaço urbano fragmentado.
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