O recente ataque à estátua de Borba Gato, em um ato político realizado no dia 24/07/2021, em São Paulo, reacendeu o debate na sociedade brasileira sobre a presença das estátuas em homenagem aos bandeirantes. O ocorrido se soma a outras investidas à monumentos pelo mundo, em uma crescente desde 2020, como caso o movimento Black Lives Matter nos EUA em relação às estátuas de figuras do passado escravista do sul do país, passando por países latino-americanos como Colômbia e, em especial, Chile.

Contudo, esse debate é bem mais antigo e possui grande acúmulo teórico nas discussões entre historiadoras e historiadores. O foco aqui é pensar esses movimentos a partir da Geografia, por meio do conceito de Rugosidade Espacial, formulado pelo geógrafo Milton Santos, ainda que a análise histórica seja parte importante da análise.

Do ponto de vista histórico, essa derrubada de estátuas se constitui como uma disputa de narrativa da história: as pessoas que as ergueram queriam construir uma certa representação do passado, enquanto as pessoas que as destroem querem disputar essa narrativa. A presença de monumentos em via pública conta uma história “oficial” que serve a determinados objetivos políticos, de modo que os destruir é uma ação simbólica que desconstrói uma determinada maneira de ver a história.

Monumentos históricos atacados e eventualmente destruídos compõem a história desde, no mínimo, a antiguidade. Abundam exemplos, como o caso do povo romano: alguém que tivesse caído em desgraça (como uma vergonhosa derrota militar, por exemplo) corria o risco de ter sua memória “apagada” por meio da destruição de todas as estátuas, pinturas e registros de sua existência.

Movimentos religiosos ao longo da história já atacaram e destruíram símbolos de outras religiões, vistos como “heresia”. Mesmo as estátuas de bandeirantes de São Paulo já sofreram ataques com tinta vermelha, para associar com sangue. O monumento erguido por Oscar Niemeyer em homenagem aos trabalhadores e trabalhadoras mortos no massacre de Carajás foi destruído duas semanas depois de terminado e jamais foi reerguido.

O ataque a Borba Gato na visão da Geografia

Por que a Geografia pode contribuir para esse debate? Porque o espaço nos conta muito da sociedade que o criou. Para a Geografia, o espaço é um produto social que revela as relações sociais que o produziram. O conceito de Rugosidade Espacial, de Milton Santos, é útil para pensarmos a forma como a sociedade lida com seu espaço justamente por tratar de formas espaciais do passado que, por algum motivo, duraram mais do que as relações sociais que as produziram e elas acabam, assim, como uma “herança” para a sociedade do futuro, no qual se estabelecerá uma relação com essa forma espacial do passado. Segundo Milton Santos:

“Chamemos rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de acumulação, supressão ou superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares”.

A Natureza do Espaço (p. 140)

Esses elementos que povoam o espaço a nossa volta podem, eventualmente, ter perdido sua função original. Podem estar “deslocados” na realidade atual porque a sociedade hoje não é a mesma da década de 1960. Nós teremos, então, que lidar com esse objeto do passado. Podemos ignorar, destruir, valorizar, ressignificar, etc. Tudo isso é uma relação possível. Dependendo da relação que estabelecermos, esse objeto pode assumir uma nova função ou ainda um novo sentido na sociedade atual. Nas palavras de Milton Santos: 

“Uma vez criada e usada na execução da função que lhe foi designada, a forma frequentemente permanece aguardando o próximo movimento da sociedade, quando terá toda a probabilidade de ser chamada a cumprir uma nova função”.

Espaço e Método (p. 74 e 75)

Do ponto de vista da Geografia, as estátuas dos Bandeirantes falam mais sobre a elite paulistana das décadas de 1950-60 do que da história dos bandeirantes em si. Historiadoras e historiadores já desconstruíram a imagem do bandeirante que, supostamente, era um herói nacional que alargou as fronteiras de um Brasil que, na época, sequer existia. Suas vestimentas sequer se pareciam com a dos quadros e estátuas; a maioria sequer falava português. Eram caçadores de indígenas, gente que estuprou, matou, roubou em prol de si mesmos.

A construção da figura do bandeirante como herói

Os bandeirantes foram por muito tempo invisíveis na história brasileira. Os primeiros livros de história que tentavam contar o que seria o “passado nacional”, escritos no Rio de Janeiro, sequer os mencionavam. Foi só com a ascensão econômica de São Paulo que surge um movimento da historiografia paulista de “resgatar” a figura do bandeirante para mostrar como São Paulo teve sua importância no que seria o começo da nossa nação. É uma maneira de dizer que “participamos”, “somos relevantes para a história do Brasil”, além de, claro, disputar a narrativa histórica com o Rio de Janeiro.

As estátuas de Bandeirantes materializam no espaço uma tentativa da elite paulistana de materializar, por meio do espaço, um poder simbólico, um tipo de soft power, que legitima seu protagonismo político no país. Não é à toa que a maioria desses monumentos é erguido entre as décadas de 1950 e 1960, data da celebração do quarto centenário da cidade de São Paulo. Essa elite paulistana que tinha nos bandeirantes seus heróis e que erigiu em homenagem a si mesma esses monumentos nos conta sobre um ponto de virada na política brasileira e mostra como o espaço participa da disputa. 

Muitos defensores da estátua do Borba Gato argumentam que ele não caçava indígenas, apenas pedras preciosas. Perceba que isso individualiza o debate para um exame caso a caso e ignora o movimento geral que produziu diversas formas de homenagear bandeirantes. Mesmo que ele em si não fizesse barbaridades tão intensas, sua estátua foi erguida no mesmo movimento de valorização geral dos bandeirantes e, portanto, faz parte desse contexto maior, ainda que a obra tenha seus aspectos contra insurgentes, como ser feita de material não convencional etc. 

O momento histórico mudou, hoje temos outra visão histórica dos bandeirantes e essas estátuas já não fazem o mesmo sentido. Portanto, não é absurdo pensar que essas estátuas não deveriam compor nosso espaço, já que não é essa mensagem que queremos representar sobre nós mesmos. Essa mudança, essa dinâmica em relação às rugosidades, é um elemento social e faz parte do jogo. Dentro da perspectiva de Milton Santos, isso é parte do processo e, ainda que não gostemos, acontece o tempo todo: prédios históricos destruídos por avenidas, o arraial de Canudos alagado para construção de uma barragem, os exemplos são múltiplos e cada um deles nos contam o que nossa sociedade valoriza e o que pensa de si.

Destruir ou mandar para museus?

Uma vez assumida a perspectiva de retirada das estátuas, resta a pergunta: destruir ou mandar para um museu? A ideia de mover para um museu parte da perspectiva de que a estátua é um documento histórico e, por isso, deve ser estudada. Existem museus de acontecimentos trágicos como o holocausto, o memorial do 11 de setembro em Nova York, entre outros.

Essa é uma ideia válida. Muitos defensores dessa ideia argumentam que destruir essas estátuas é apagar a história, mas não consideram o fato de que destruir estátuas é uma relação com o espaço que também entra para a história. Saber que os romanos destruíam estátuas de quem caiu em desgraça militar nos conta sobre o povo romano e sua mentalidade, talvez nos revele mais sobre eles do que se essas estátuas chegassem até nós. Mostra sua mentalidade, o que valorizavam e o que desprezavam. 

A estátua do Borba Gato já está na nossa história, temos muitos registros dela. Ao destruir essa estátua, estamos mandando para o futuro uma mensagem diferente do que se simplesmente a mudássemos para um museu. Do ponto de vista de quem destrói uma estátua desse tipo, a ideia é mandar uma mensagem simbólica que registre na história a natureza dos movimentos contra insurgentes do Brasil de 2021.

Quando, daqui 50 anos, estudarmos que essa estátua foi queimada, e não enviada a um museu, faremos uma representação dos movimentos contra insurgentes de nossa época diferente da que faríamos se esses mesmos movimentos fizessem uma petição on-line pela retirada da estátua. A relação com o espaço revela o conteúdo social de uma época. Qual o conteúdo queremos imprimir no espaço? Essa é a verdadeira questão. A história do espaço não se apaga, pois cada movimento da sociedade é produzir espaço e é criar uma história sobre ele.

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